#02 | Bad Prince e a forma como o abuso é retratado nos romances
Delicado? Sim. Porém está mais do que na hora de aprofundarmos essa discussão.
Nota Importante!
Esse é um e-mail que irá falar sobre um assunto muito sensível e que pode ser um gatilho pra você. Caso seja, peço que não leia este e-mail. Pra mim é muito importante que você se sinta confortável participando das nossas discussões, tá? No mais, ao final desse debate você encontra alguns links para alegrar a sua sexta-feira!
Não sou eu que encontro as polêmicas, elas que me encontram
Eu posso até estar em Paris, mas estou de olho em todas as nossas redes “book” qualquer coisa que vocês inventam por aí. E na última semana o #booktwitter estava revoltadíssimo com Bad Prince, da Zoe X, um livro que aparentemente estava romantizando uma cena de estupro.
Sendo bem honesta, eu não li Bad Prince — e nem pretendo — mas essa discussão sobre dark romance e a romantização de qualquer tipo de abuso sempre surge de tempo em tempo e eu não acho que damos a devida importância pro tópico. Sendo assim, acho que a nossa segunda newsletter deveria alimentar ainda mais o assunto. O que você acha?
Vamos começar do começo…
O estupro é, geralmente, usado nos romances para a) demonizar personagens masculinos e deixar claro que eles são vilões e merecem o que quer que aconteça, ou b) tornar personagens masculinos heróicos porque salvam as mulheres indefesas do estupro (ou pelo menos se vingam).
Um bom exemplo disso é Princesa de Papel, quando o Reed salva a Ella no primeiro livro de ser atacada por uns caras numa festa. Ou em Tarde Demais, na cena de abertura do livro (ou em qualquer outra em que o Asa apareça).
“Além da questão de reforçar concepções imprecisas de estupro, o retrato do estupro na ficção muitas vezes usa mulheres como objetos narrativos projetados para servir a história de personagens masculinos.”— litereactor.com
A questão é que o uso desse elemento nos romances tem perdido um pouco a mão, afinal, algumas perguntas extremamente importantes estão deixando de ser feitas ao longo do caminho como, por exemplo, para quem essa história serve? a minha protagonista está sendo desempoderada? eu realmente preciso usar este elemento?
O papel do dark romance na popularização do uso desse elemento
Parte da discussão sobre o uso do estupro em romances veio do subgênero dark romance, que é algo recente no mercado dos romances, mas vem se tornando muito popular entre os leitores. Basicamente, esse gênero tem como premissa trazer personagens destruídos emocionalmente e, por consequência, seus enredos tem temas pesados como abusos físicos, psicológicos, violência e estupro.
Inclusive, parte da discussão sobre Bad Prince era sobre o fato de ser um dark romance e, por isso, justificar a cena pesada que a autora colocou na história. O que, eu já adianto, não justifica de forma alguma.
Quando falamos sobre dark romance, tratamos de assuntos pesados e de personagens com traumas profundos que impactam diretamente nas atitudes que eles tem ao longo do livro. É muito comum que você encontre temas como BDSM, abuso físico e psicológico, sequestro e, em alguns casos, ausencia de conscentimento.
Os leitores que gostam desses livros geralmente procuram romances extremamente sensuais e fumegantes com uma catarse emocional, e o dark romance entrega isso muito bem!
Todos esses traumas e reações dos personagens são, em sua totalidade, uma escolha de narrativa do próprio autor de acordo com o que ele imagina ser necessário para que aquela história seja contada da forma correta.
Ou seja, o estupro não precisa ser colocado numa cena, caso ele não queira.
Por exemplo, o autor pode usar desse elemento como parte da construção do personagem principal, mas não precisa fazer com que personagem/leitor vivam aquilo em um capítulo.
Nesse ponto, a Fernanda Freitas, consegue trabalhar bem em Bad Blood, onde ela narra esses acontecimentos traumáticos através de diálogos, mas sem fazer com que a gente reviva o trauma junto com o personagem. O elemento existe no enredo, é um fator de impulsionamento tanto do personagem quanto da história, mas não é romantizado.
No caso do dark romance enquanto gênero, por mais que sejam livros que abordem sempre assuntos muito pesados, ainda fica sob a responsabilidade e consciência do autor como ele vai se utilizar desses tópicos dentro do seu enredo.
Concluindo, não. O fato de Bad Prince ser um dark romance não justifica a cena que vem sendo debatida no #booktwitter, sendo uma escolha pessoal da autora de colocá-la em seu livro.
Não culpem todo um gênero pela escolha ruim de uma única pessoa.
Whitney, My Love como prova de que consciência pode ser a chave
Sim, ladys. Eu estou lutando contra o meu impulso de começar falando sobre CoHo e o quanto Ugly Love e Tarde Demais são livros que me arrepiam a espinha de ódio. Mas antes desses livros se tornarem absolutamente populares, em 1985, Judith McNaught lançava Whitney, My Love, um romance tão problemático quanto fascinante.
Apesar de ser um dos meus romances de época favoritos, demoramos anos para que Whitney, My Love tivesse a sua problemática reconhecia — e corrigida. E eu acho importante sempre reforçar o ponto da correção porque, em 85, quando o livro foi publicado, temas como abuso e estupro não eram discutidos abertamente entre as mulheres e do ponto de vista da autora, ela havia conseguido driblar essa questão na construção do enredo.
Eis um trecho da entrevista onde ela fala sobre isso:
“Eu pensei que tinha evitado com sucesso e claramente a questão, e nos anos que se seguiram à publicação de Whitney, eu nunca conseguia entender por que um contingente de leitores inteligentes ainda se agarrava à noção de que era
estupro. Eu não conseguia entender – até alguns meses atrás, quando eu estava relendo o livro pela primeira vez em muitos anos e me preparando para trabalhar na nova versão em capa dura."
Uma vez que ela releu o próprio trabalho e se permitiu conversar com algumas de suas leitoras, a perpectiva que ela tinha sobre a sua própria história, mudou.
“Quando fui trabalhar nesta nova versão, não tive a menor intenção de alterar a cena que você se refere a “A cena da surra”. Eu sabia que tinha causado alguns comentários, e eu sabia que havia alguns leitores que a viam como censurável, mas na minha memória, a cena estava bem do jeito que estava, e eu pretendia deixá-la desse jeito. E então eu li novamente depois de todos esses anos … e eu não gostei disso. Isso me fez sentir … desconfortável … enjoada. Eu alterei isso.”
Eu gosto muito de usar Whitney, My Love e a relação que a própria autora tem com o livro como exemplo por ser uma prova irrefutável de que o uso do estupro romantizado como elemento em um romance é pura e simples escolha do autor — e que essa escolha pode mudar com uma pitada de consciência.
A influência dos próprios leitores a popularização do elemento
Em 1985 nós não falávamos sobre isso de maneira aberta, mas nos últimos anos esse assunto tem se tornado frequente nos trends topics de qualquer rede social e precisa ser levado mais a sério pelos autores de romance e pelos leitores também.
Sim, os leitores.
Eu estava ouvindo uma discussão da Sarah MacLean com a Jen no podcast Fated Mates, onde elas falam muito sobre a consciência que o leitor precisa ter de gostar muito de um livro e ainda ser capaz de reconhecer o quão problemático ele é. Era um episódio, acho que da segunda temporada, onde elas discutiam o fenômeno de 50 Tons de Cinza.
E eu acho que é sobre isso. (embora eu odeie esse termo)
Um dos meus dark romances favoritos é Credence, da Penelope Douglas. Uma leitura extremamente problemática e com tantas bandeiras vermelhas que mais parece a únião soviética, mas ainda assim, um livro que eu adorei ler porque se enquadra extremamente bem em outros pontos que me prendem numa leitura.
E esse é o ponto.
Não é um livro que vocês vão me ver recomendando sem levantar todos os pontos negativos — e de gatilho, mas ainda assim não deixa de ser um livro que eu gostei.
Eu sinto que falta um meio termo nas comunidades literárias onde, ao invés de você colocar o livro na categoria dos “banidos”, você precisa saber debater e pontuar o que tem de positivo e o que tem de negativo — até porque, o autor vai acompanhar essas discussões e compreender (ou não), onde ele precisa melhorar.
Não é sobre o livro ser bom ou ruim: é sobre porque você acha que ele é bom ou ruim.
E com essa discussão conseguimos espaço para problematizar, da forma correta, porque o uso de elementos como abuso físico, psicológico ou mesmo estupro não deve ser feita de maneira leviana e nem utilizada de maneira irresponsavél na construção do romance.
E quando eu digo problematizar, não significa ficar no twitter atacando o autor ou quem gosta do livro e não quer participar da discussão, mas realmente levantar os pontos que tornam esse tipo de elemento, usado de forma impensada, algo muito perigoso para determinados leitores.
Nesse ponto, eu sinto que falta um pouco mais de diálogo na comunidade leitora e, por isso, este e-mail.
Quando não debatemos abertamente sobre o quão problemático são livros como After, Ugly Love, Bad Prince etc, damos carta branca para que autores fechem os olhos para relações sem conscentimento, abordagens violentas e estupro. Afinal, se eles estão escrevendo é porque existe um entendimento de que esse tipo de elemento está sendo utilizado da maneira correta.
Pra ser bem sincera, eu nem acho que esse é o tipo de coisa que deveria ser um elemento, mas essa é total a minha opinião pessoal. Não acho que eu usaria isso num livro meu e, não acho que isso deveria ser usado em livro algum. Existem outras opções de elementos que podem ser usadas pra compor uma história e, para provar isso, eu te convido a ler este artigo da mythcreants.com com diversas sugestões para s substituição do elemento na história.
E para que essa newsletter não fique maior do que já está, eu quero fazer um convite. Me conta nos comentários qual a sua opinião sobre o uso de elementos como abusos físicos, psicológicos e até mesmo estupro como parte do plot de um romance?
Um livro que você deveria ler
De Lukov, com amor • ver livro
Se alguém perguntasse a Jasmine Santos como ela descreveria os últimos anos de sua vida em uma única palavra, ela, definitivamente, usaria uma com quatro letras. Depois de dezessete anos e incontáveis promessas e ossos quebrados, ela sabe que as portas para competir na patinação artística estão começando a se fechar. Mas a oferta mais incrível de sua vida surge por meio de um cara arrogante e idiota que ela passou a última década desejando poder lançar na direção de um ônibus em movimento. Então, Jasmine compreende que precisará reconsiderar tudo. Inclusive Ivan Lukov.
Você também pode gostarde de:
O conde que eu arruinei, da Scarlett Peckham
The Play: Os desencontros de Demi e Hunterm, da Elle Kennedy
Depois do Sim, da Taylor Jenkins Reid
Blackmoore, da Julianne Donaldson
alguns links legais
🔗 Judith McNaught é uma das autoras de romance de época que eu mais admiro no mercado literáiro. Acho que ela tem uma escrita que se aprofunda muito nos traumas dos personagens e traz isso muito bem através dos diálogos e acontecimentos dos seus enredos. Se você quiser conhecer mais sobre a autora, eu tenho uma entrevista completa dela traduzida. É só você clicar aqui.
🎶 E para minha sorte, enquanto eu estava escrevendo essa newsletter, me deparei com uma playlist no YouTube inspirada em nada menos que O Príncipe Cruel, da Holly Black. E eu sou completamente obcecada com o enemies to lovers desse livro, caso você não saiba. Você, inclusive, pode ler essa newsletter ouvindo a playlist.
“Until I feared I would lose it, I never loved to read. One does not love breathing.” — Harper Lee (American novelist is best known for her 1960 novel To Kill a Mockingbird)
e assim terminamos a nossa segunda newsletter. não esquece de me contar se gostou, ok?
Com carinho,
Esse tema é uma problemática que vem crescendo com o tempo, e confesso que a princípio, achei uma grande besteira, mas quanto mais vias os argumentos e acompanhava todo esse desenrolar, fui desenvolvendo uma maior consciência, e isso alterou muitos meus gostos literários ( logo eu, que pensei que havia chegado a minha zona de conforto e não iria sofrer maiores mudanças, que irônia).
Atualmente, acho que de fato é desnecessário, em muitas e muitas obras, usam esse gancho da violência para justificar coisas que ao meu ver não precisaria de justificativa, um exemplo que vejo em muitos livros que me fizeram dropar após essa nova visão: A personagem feminina só é forte por ter passado por algum tipo de violência, ou o personagem masculino só é forte por ter visto alguma figura feminina na vida dele passar por tal coisa .. porque eles não podem ser fortes por eles ? Sua personalidade, garra, vontade em conquistar aquilo, tantas justificativas ...
Creio que, a violência foi muito utilizada por escritores por preguiça e comodismo ( porque mudar, se é algo que tem dado certo para tantos outros ?) , mas atualmente vejo cada vez mais obras que não precisam utilizar esse livro para terem protagonistas fortes e plots incríveis . Acho que se devidamente embasado, com responsabilidade e com avisos, é algo usável ( não podemos também ignorar algo que é uma realidade ) .
Enfim, creio que equilíbrio é necessário, se pode ser substituído sem alterar o teor da história , porque não ? Se é algo absolutamente necessário, se jogue. Não podemos apesar de tudo excluir todo um nicho da literatura , apenas ter mais consciência ao usar.
❤️❤️❤️❤️